Depois de ver na internet uma postagem de policiais que ameaçavam os participantes da Marcha da Maconha que seria realizada em Manaus, em junho, o juiz Carlos Valois resolveu agir. Comentou em suas redes sociais que “ameaçar, agredir, bater em manifestante que defende o uso de uma planta medicinal é, além de crime e covardia, burrice histórica, social e política”. Foi o bastante para passar a ser alvo de xingamentos.
“Juiz maconheiro” e “defensor de bandidos” foram algumas das ofensas postadas contra ele na internet. Valois, que é o titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas, constituiu advogado, processou os autores das ofensas – todos policiais militares – e conseguiu na justiça um acordo para que eles pagassem uma quantia simbólica à Associação de Pacientes da Cannabis Medicinal.
O magistrado considerou pedagógico o valor de R$ 1000. “É muito para um soldado, eu não queria prejudicar ninguém. Queria uma punição que os fizesse aprender”, diz. Para ele, este tipo de resposta desestimula as agressões nas redes sociais.
Titular da Vara de Execução Penal do Amazonas, o juiz ficou nacionalmente conhecido em 2017, quando, depois do assassinato de 56 presos no sistema penitenciário amazonense – alguns por decapitação -, reprovou os que comemoravam as mortes dos detentos.
Nesta entrevista ao Uol, Valois fala também das várias críticas que recebe, inclusive de seus pares, por sua posição garantista e pela defesa da descriminalização das drogas. “O judiciário tem se mostrado cada vez mais conservador. Isso acontece porque ainda é um espaço privilegiado na sociedade”, acredita. O juiz, que está na Alemanha, onde faz um pós-doutorado, também defende uma abordagem diferente na defesa dos direitos humanos.
UOL – Como recebeu as ofensas dos policiais ao senhor?
Luís Carlos Valois – O meme contra a Marcha da Maconha circulou na internet. Eu vi o compartilhamento nas redes sociais, com fotos da polícia agredindo pessoas e com a insinuação de que a polícia de choque também compareceria, que iria lá para coibir, para agredir os manifestantes. Eu disse que isso seria um absurdo, que a polícia tinha que garantir a liberdade de expressão e manifestação. Disse que o Supremo Tribunal Federal já tinha decidido isso e falei do quanto essa guerra às drogas causava danos, inclusive aos policiais. A partir daí, vários comentários foram postados dizendo “esse juiz é bandido”, “juiz maconheiro” e coisas do tipo. Isso incomoda. Essas agressões nas redes sociais a gente entrega para o advogado, e não adianta ficar pensando nisso. Foi o próprio advogado que pesquisou e viu que essas ofensas estavam no site da Associação de Cabos e Soldados de Manaus. Foi fácil identificar. Todos que eu processei eram policiais, as peças que eu achei mais graves eram de policiais militares.
Em qual crime eles foram enquadrados?
Calúnia e difamação. Mas não sei exatamente em qual tipo penal o advogado enquadrou. Eu passei a procuração, e ele tratou disso. Se a pessoa foi intimada, chega na Justiça e paga. Pode-se dizer que reconheceu a autoria. O acordo foi uma composição de danos. Houve um dano à minha imagem, e eu sugeri esse valor.
Por qual motivo estabeleceu um valor de reparação tão baixo?
Achei que soldado e cabo, esse tipo de patente da Polícia Militar, ganham muito pouco. R$ 1.000 é muito para um soldado. Eu não queria prejudicar ninguém. Queria uma punição que os fizesse aprender. A ideia de encaminhar para a Associação de Pacientes da Canabis foi minha, achei mais pedagógica. Óbvio que ninguém paga contente, mas sabe que ofendeu alguém que defende a descriminalização da cannabis e de repente foi obrigado a pagar para uma associação de pacientes que precisam da cannabis como remédio. Eu poderia estabelecer a quantia que eu quisesse e achei que era um valor que as pessoas poderiam pagar, não iam fugir e nem aumentar o tempo de processo.
Acha que atitudes como essa podem estimular reações às agressões que cada vez mais ocorrem na internet?
A Justiça aos poucos está se adaptando à questão das relações virtuais. Mas com certeza desestimula esse tipo de agressão. As pessoas têm tendência de achar que internet é terra de ninguém. Como no faroeste, podem fazer o que quiser, dizer qualquer coisa. É importante que as pessoas procurem seus direitos e comecem a trazer a lei para as redes sociais, que estabeleçam um comportamento educado, de respeito.
O senhor acha que é possível mudar esse modelo de guerra às drogas estabelecido atualmente no Brasil?
Acho que uma mudança no modelo de guerra às drogas é importantíssimo. Drogas deveriam ser tratadas como um problema de saúde pública. Temos o álcool, que é uma das drogas que mais causa violência, que mais causa mortes e é regulamentada. Quando a gente fala em descriminalizar as drogas não falamos em liberar, muito pelo contrário. Na prática, a droga já está liberada. Falamos em descriminalizar para regulamentar o consumo, regulamentar o comércio, é isso que está nos faltando.
Quando você criminaliza, entrega todas as drogas para o mercado paralelo. Ou seja, deixa a droga no mercado, mas desregulamentada. Sendo vendida suja, vendida sem informação, vendida sem orientação ou educação sobre isso. Um absurdo. Na verdade, criminalizar é não fazer nada em relação às drogas, porque a gente sabe que elas vão estar sempre aí. Vai sempre haver o uso.
“Hoje, em uma farmácia existe droga muito mais perigosa e que pode causar muito mais danos que essas que são vendidas no mercado paralelo.”
A gente proibindo agrava a violência, causa mais mortes. Há jovens, crianças indo para escola, trabalhadores indo para o trabalho morrendo, levando tiro porque a polícia quer matar um traficante e acaba acertando aquele trabalhador. As drogas com orientação, com educação e consumo regulamentado, não matam ninguém, prejudicam apenas a quem usa e não a uma pessoa que está indo para o trabalho.
Como suas posições progressistas são vistas no ambiente atual do Judiciário, que parece cada vez mais conservador?
Verdade. O Judiciário tem se mostrado cada vez mais conservador. Isso acontece porque ainda é um espaço privilegiado na sociedade. Se é assim, para manter o seu status, acaba sendo conservador. O conservadorismo existe justamente para manter um status quo. Hoje em dia, parece que respeitar a Constituição Federal virou algo de progressista, o que é um absurdo. Fazer isso não quer dizer que alguém esteja querendo o progresso da sociedade, mas apenas que não haja um movimento reacionário para piorar a situação contra a própria Constituição.
Quem defende a Constituição acaba legitimando o próprio Judiciário, acaba sendo uma figura que faz as pessoas terem esperança na Justiça. Nem sei se esse é o meu caso, mas acho que os juízes progressistas, aqueles que têm uma visão mais garantista do Direito, acabam dando mais esperanças para a população.
“A visão dos pares é claro que é de receio. Há uma certa rejeição àquele juiz tido como progressista, mas não dá para ficar calado. Não dá para ver injustiça e desigualdade com silêncio. Isso seria um absurdo.”
Por mais que haja uma reação, um preconceito contra aquele que coloca a Constituição acima de tudo, não tem como fugir disso. A gente tem que encarar e enfrentar até o fim. No futuro a gente vai saber quem estava certo e quem estava errado. Sabendo que estou do lado da Constituição, eu tenho certeza de que estou no lado certo.
Quais as principais distorções que o senhor identifica hoje no Judiciário brasileiro?
O Judiciário deveria seguir o perfil de um Estado Democrático de Direito. Não um Judiciário que trabalha em cortes, palácios, “sua excelência” para lá, “sua excelência” para cá. Deveria ser um poder mais democrático, que chegasse à periferia, que estivesse nos bairros. Hoje temos juízes que discordam da audiência de custódia, que existe para o magistrado ver o preso, acompanhar a realidade daquela pessoa encarcerada. Quer dizer, temos juízes querendo audiência por videoconferência. O magistrado não tem que estar protegido por filtros, por televisão, o juiz tem que estar perto das partes, tem que estar olhando a população, dialogar ao máximo com a sociedade. Isso, sim, seria um Judiciário de um Estado Democrático de Direito.
Acha possível mudar a noção disseminada na opinião pública de que quem luta pelos direitos humanos é “defensor de bandido”?
Isso é educação também. As pessoas têm que ser orientadas porque não existe “o” direito humano. Todos os direitos têm importância em um estado democrático. Essa classificação “direitos humanos” é doutrinária, uma classificação de texto jurídico, mas não tem nada a ver com a lei. Toda lei tem um valor igual. E essa ideia de defensor de direitos humanos também. O problema é que muitas pessoas acreditam que quem defende o direito de deficientes, direito dos aposentados, direito do idoso, direito do trabalhador não está defendendo algo em prol da comunidade.
Todas as leis têm o mesmo valor. Se aquele cidadão está procurando seu direito naquela situação específica, aquele é um direito humano. Acho que essa separação acaba sendo um tiro no pé porque toda lei tem o mesmo valor. Tem que ser respeitada independentemente se é classificada como direito humano, direito tributário, direito penal? Isso é educação.
Você criar na sociedade a desinformação, como tem sido feito, só favorece quem está ganhando com essa desinformação, quem está usufruindo de tanta desigualdade, de tanta injustiça e tanta violência. Porque tem gente usufruindo disso. “Há um mercado que vive dessa violência, que vive dessa insegurança. Então, disseminar desinformação é muito bom para quem está vivendo dessa desestruturação da sociedade.”
Fonte: Uol Notícias
Foto: Uol