No início dos anos 1970, uma grande surpresa agitou os farmacologistas, aqueles que estudam o efeito das substâncias químicas sobre os órgãos e sobre as células. É que o neurocientista Solomon Snyder, da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, descobriu que havia no cérebro proteínas capazes de reconhecer a morfina.
Parecia muito estranho que o cérebro tivesse receptores para uma substância analgésica obtida de um vegetal – a papoula… E ainda mais uma substância fortemente viciante, presente no tradicional narcótico cujo remonta a eras e civilizações antigas. No entanto, pouco tempo depois, o mesmo Snyder descobriu que as morfinas endógenas, que ficaram conhecidas como endorfinas.
Ficamos sabendo então que o nosso cérebro fabrica um tipo de morfina participante dos mecanismos naturais de regulação da dor.
A cannabis feita no cérebro.
Surpresa parecida causou a descoberta dos receptores canabinoides, capazes de reconhecer as substâncias psicoativas derivadas da cannabis. Foi em 1990 que o grupo do farmacologista Tom Bonner, do Instituto Nacional de Saúde Mental, nos Estados Unidos, clonou pela primeira vez um receptor canabinoide do cérebro. A esse efeito seguiu-se a descoberta dos endocanabinoides, compostos gordurosos produzidos por neurônios e capazes de serem reconhecidos pelos mesmos receptores da cannabis, posicionados na membrana de outros neurônios.
O que faria essa cannabis endógena no cérebro? Os anos seguintes mostraram que os endocanabinoides são neurotransmissores não convencionais, pois não são armazenados em vesículas, mais produzidos “sob encomenda”. Ou seja: quando os neurônios do sistema nervoso central são ativados, sintetizam “cannabis endógena” para modular as suas próprias sinapses.
Constatou-se que a ação dos endocanabinoides nas sinapses é retrógrada, ou seja, ocorre de trás para frente: sintetizadas no neurônio ativado por uma sinapse, essas substâncias vão atingir o neurônio antecedente da cadeia, sendo reconhecidas pelos receptores nele posicionados, que então freiam a transmissão sináptica.
Esse mecanismo é atuante nas regiões cerebrais que regulam o apetite e o humor, além das regiões ligadas á dor e á memória.
Os nossos canabinoides
Com a evolução do conhecimento sobre os endocanabinoides, mais surpresas aguardavam os farmacologistas.
O grupo descobriu que os neurônios produzem peptídeos (pequenas proteínas) derivados da hemoglobina que ativam os receptores canabinoides do sistema nervoso – de modo semelhante à cannabis. O trabalho envolveu o levantamento proteômico dos derivados da hemoglobina e de sua presença no cérebro, o que levou à identificação de peptídeos com nove aminoácidos e ação canabinoide. Essas substâncias, chamadas hemopressinas, foram encontradas em regiões do cérebro ligadas à regulação do apetite (o hipotálamo) e em outras que atuam na geração de sensações prazerosas (o núcleo acumbente), bem como nos terminais nervosos periféricos envolvidos na dor.
Os pesquisadores então realizaram diversos experimentos para testar a ação das hemopressinas nos receptores canabinoides conhecidos, o que permitiu a identificação da via de ação dos peptídeos.
Hemoglobina e cannabis: relação improvável.
A nova surpresa que o estudo trouxe, além da identificação de novos canabinoides, foi sua origem a partir da hemoglobina. O que estaria fazendo no cérebro a molécula mais conhecida do sangue, encarregada de fixar o oxigênio da respiração nas células vermelhas? Na verdade, já se conhecia a presença de hemoglobina, em pequenas quantidades, em outros tecidos.
Outro fato que chama a atenção é que dados preliminares anunciados pelos autores do estudo indicam a produção de hemopressina em maiores quantidades quando o cérebro é submetido a condições de isquemia, como nos acidentes vasculares cerebrais. Nesse caso, teria essa “cannabis endógena” alguma ação protetora contra os acidentes isquêmicos cerebrais?
A natureza, como se vê, percorre os mesmos caminhos para atender diferentes necessidades. As diversas células do organismo são aparelhadas para sintetizar substâncias semelhantes em órgãos e tecidos diferentes. Mas, em cada um, as mesmas substâncias são utilizadas para funções distintas. Soluções plenas de “racionalidade econômica”, diriam os economistas. Aproveitando ao máximo das mesmas soluções em diferentes problemas.
Fonte: Ciência Hoje