Graças ao óleo de cannabis, o mistério do autismo está mais perto de ser resolvido.

O autismo é um mistério. Apesar de ser uma condição relativamente comum – que afeta mais de 0,5% da população, e há quem suspeite que o número esteja crescendo -, a ciência jamais compreendeu suas causas e a medicina não tem nada de muito bom para oferecer tratamento.
Os médicos receitam antipsicóticos para conter ataques de fúria, antidepressivos para melhorar o humor e tirar do torpor, ansiolíticos para acalmar, soníferos para dormir, anticonvulsivantes para reduzir sintomas nervosos. E depois toda uma outra leva de remédios para combater os efeitos colaterais desses primeiros. Cada um deles melhora um tiquinho algum sintoma, mas o coquetel completo não parece ajudar muito a lidar com os sintomas mais importantes do distúrbio: a dificuldade de conectar afetivamente com outras pessoas, a ausência no olhar, a dificuldade de compreender o mundo. Mesmo tomando um coquetel completo de remédios com tarjas assustadoras, o autismo parece continuar lá – acalmado, sonado, disfarçado, silenciado, mas lá.
Um estudo de pequena escala feito no Brasil com 18 pacientes, a maioria de Belém do Pará, ligados a uma associação de pacientes chamada Ama-me, conseguiu resultado bem melhor que isso – e publicou-o na semana passada na revista Frontiers of Neurology. Catorze deles apresentaram melhora considerável (de mais de 30%) em pelo menos um grupo importante de sintomas (três pacientes não seguiram o tratamento, um não teve melhora considerável). Ficou patente a diminuição no número de convulsões, a melhora no déficit de atenção e hiperatividade, no sono, na comunicação e na interação social. Alguns pacientes melhoraram consideravelmente até quatro desses grupos de sintomas ao mesmo tempo. Não tem nada na farmácia que entregue algo parecido.
É o tipo de resultado que tende a inspirar estudos de maior escala, com muitos pacientes. Sucesso semelhante já tinha aparecido no final do ano passado num outro estudo, feito com 60 pacientes, em Israel.
Israel não perdeu tempo e já está fazendo testes clínicos de grande escala, com duplo cedo, randomizado, tudo que precisa para garantir o resultado e transformar em tratamento para quem precisa. “Até o final deste ano ou início do próximo, acredito que vamos ver resultados bem contundentes vindos de lá, a respeito da utilidade desses extratos”, diz o pesquisador Renato Malcher-Lopes, um dos autores da pesquisa brasileira.
Malcher é neurobiólogo, e Leandro Ramirez, outro dos co-autores do paper, é médico. Mas ambos são outra coisa também: pais de pacientes com autismo, inconformados com a falta de resposta da ciência e da medicina à pergunta fundamental para suas vidas, que é “O que causa o autismo?”.
O resultado que eles estão obtendo parece reforçar a “hipótese do mundo intenso”, uma teoria formulada na década passada na Suiça pela qual os transtornos aparentados com o autismo seriam causados pelo excesso de estimulação dos neurônios. O sistema endocanabinóide, alvo químico da planta da cannabis, parece ser um mecanismo cuja função é justamente reduzir a excitação das coisas. Isso explica o sucesso de remédios à base de cannabis para tratar convulsões, que são curtos-circuitos neuronais, reduzindo a agitação deles. Já se sabia que autistas que têm convulsões, algo bastante comum, se beneficiavam da cannabis. Agora está ficando claro que eles podem obter melhoras em vários outros sintomas também. No ano passado, cientistas italianos reforçaram a hipótese quando concluíram que cérebros autistas têm uma espécie de inflamação – que é outro processo que parece se beneficiar de ações no sistema endocanabinóide.
Muita gente tem dito que o remédio para o autismo é o CBD, ou canabidiol, um dos componentes da cannabis, menos estigmatizado que o THC, que causa o barato da cannabis. Mas os cientistas envolvidos nessas pesquisas, tanto em Israel quanto no Brasil, estão com uma impressão fortíssima de que, sem THC, o tratamento com CBD não funciona ou funciona bem pior.
Nos testes israelenses, os cientistas usaram uma proporção de CBD para THC de 20:1. Já no Brasil foi de 75:1. “Conversando com eles e, comparando os dados, fiquei com a suspeita de que, com mais THC, teríamos resultados melhores e mais rápidos”, disse Malcher.
No cuidado do próprio filho, ele pensa muito nessas variáveis. E percebe que, sem THC, as doses de CBD precisam ser altas demais, a ponto de causar efeitos colaterais indesejáveis.
“Precisamos sair dessa discussão idiota de dizer que THC não é medicinal”, diz Malcher. “A grande vantagem da cannabis é justamente ter tantas substâncias com efeitos diferentes juntas, permitindo que cada paciente encontre a combinação perfeita para a sua condição.”
O paper brasileiro se soma ao israelense como evidência de que o alvo para tratar os transtornos do espectro autista é mesmo o sistema endocanabinóide. Os dois países, no entanto, vão fazer coisas diferentes com a descoberta. Israel já está testando várias combinações diferentes de THC e CBD, para desenvolver tratamentos, exportar medicamentos e capacitar seu sistema público de saúde a cuidar melhor da população.
No Brasil, o resultado serve de arma na resistência de pais de pacientes, organizados em associações, produzindo ciência pela qual nem o Estado nem a academia parecem ter muito interesse.
“É uma insurreição dos pacientes contra uma medicina e uma ciência que parecem ignorar sua missão”, diz Malcher, com uma pitada de emoção.
Enquanto isso, o Conselho Federal de Medicina, esquecido do que jurou, faz política e segue negando qualquer utilidade médica do THC.

Fonte: Epoca

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